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Outro tratamento escolar do livro, precisa-se

VÍDEO 1

VÍDEO 2

VÍDEO 3

Os livros e a leitura obrigatória - algumas notas

Daniel Lousada

O "obrigatório" [tirando o caso dos sinais de trânsito e algumas regras que nos permitem viver em sociedade] causa-me arrepios. E mais arrepios sinto, quando ouço falar de livros de leitura obrigatória no Ensino Básico. Isto não quer dizer que a leitura de livros não deva ser obrigatória na escola: não havendo outra forma de os fazer entrar, então que entrem "à força". Mas eleger uma lista de livros de leitura garantida não acho que seja uma medida sensata. E quando se faz incidir sobre estas leituras a escolha dos textos que sairão em testes e exames, pode dizer-se que entramos, definitivamente, no reino da idiotice. Então, estamos a um passo de ver instalado o tratamento escolarizado de livros que seria suposto ensinarmos a (de)gostar, e corremos o risco de pôr em primeiro lugar o que é preciso fazer com eles, em detrimento do prazer que eles nos poderiam dar: «as crianças até que gostam de ler, até que a experiência de leituras obrigatórias gramaticalizadas, formatadas escolarmente, as desvia das boas leituras» (Eduardo Prado Coelho) [VER VÍDEO 1]. Já se encontram, aliás, guias de leitura que remetem o leitor para questões técnicas, relacionadas com o tipo de textos, dirigidos a crianças do 1º ciclo, que têm muito pouco que ver com a leitura e o prazer que ela nos pode dar [LER >>>].

Os livros entram na escola mas depois precisam de oferecer-se à leitura, num convite apresentado por alguém que «toque a leitura», para usar uma expressão de Rubem Alves: «tem que haver um artista que toque a leitura prá gente gostar. E quem é esse artista que vai tocar prá gente ouvir? Só pode ser o professor» [VER VÍDEO 2].
Duas considerações a respeito do que escrevi até aqui: [1] o professor como artista e [2] a (in)compatibilidade entre o desenvolvimento do gosto pela leitura e o tratamento escolarizado do livro.


Começo pela (In)compatibilidade...

Entre leitura obrigatória de livros e livros de leitura obrigatória, a diferença é substancial! Desde logo porque os "livros de leitura obrigatória", retiram professores e alunos do processo da sua escolha: não é na sala de aula [onde o que de mais importante da escola deveria acontecer], que a decisão de ler ou não aquele livro acontece. Mas como não chegava ter adotado o «Ler+ ler melhor» [sem desprezar os seus méritos, imagino as editoras a fazer fila à espera do dístico que associa os seus livros ao plano nacional de leitura]   desfez-se a liberdade de escolha na obrigação de ler os livros que nos destinaram a ler. E como se isto não bastasse, havia que condicionar o tratamento da obra pela promessa de avaliação num exame: a maneira mais rápida de nos fazer trocar o livro pelo guia que trata dele.

Há uma idade que se abre ao mundo sem receio. É o tempo da infância que se inicia liberto de fantasmas. Mas depois, com o tempo, as crianças vão construindo os seus medos, na convivência connosco que lhes mostramos o que devem ou não temer. Foi, aliás, sobre muitos destes temores, que fizeram incidir sobre nós [aos da minha geração, pelo menos] algumas ameaças de castigo: o homem do saco [em quem já ninguém acredita], o quarto escuro ou, quem diria, a escola [quando fores prá escola vais ver].

Não sei quais são, exatamente, as expectativas de uma criança que entra hoje na escola, mas não creio que entre receosa; e também não acredito que as «leituras obrigatórias» lhes provoquem qualquer receio. As últimas décadas foram de construção de uma escola de confiança, de um ambiente escolar que vê o erro de uma forma positiva, quer dizer, não se vangloriando com ele mas servindo-se dele para fazer crescer. Mas agora o que pode acontecer [já está a acontecer de facto] é que naquela convivência que têm connosco, de que falei há pouco, a pressão a que sujeitamos as crianças [porque, consciente ou inconscientemente, vamos sujeitá-las, não tenho dúvida disso] elas não vão mais encarar o erro como até aqui, porque não vamos deixá-las ao incentivá-las a jogar pelo seguro. Claro que não há mal nenhum ensinar a jogar pelo seguro quando disso «depender a vida», o que não é o caso. E mesmo não sendo o caso, impedimo-las do prazer da descoberta pelo tateamento do texto, com medo da falta de tempo para as coisas do exame.

Para aprender a ler, o importante é ler. E eu só tenho uma forma de ler: fazer o texto viver na leitura que faço dele. Mas com a entrada de livros de leitura obrigatória na escola, envoltos na «ameaça» de um exame, corre-se então o risco de trocar a leitura pelas perguntas que os exames fazem sobre o livro, que sou obrigado a ler, e que matam a sua leitura à nascença. E o ensino da leitura afasta-se da promoção do livro junto de novos leitores: o livro que seduz leitores é substituído pela ditadura da interpretação e gramática que os afasta. Pela experiência que o ensino secundário já leva, bem que podíamos conhecer já, o que os livros de leitura obrigatória fazem à leitura, para não querer replicar a experiência em idades tão precoces. O prazer da leitura desenvolve-se, investindo-se no melhor que a leitura pode oferecer, ou seja, que os bons livros, que deveriam acompanhar-nos vida fora, não podem chegar até nós contaminados de repelentes.

Não podem fazer-se, então, perguntas sobre o livro? Pode!, todas aquelas que, como leitores, o livro nos leva a fazer [VER VÍDEO 3]. Outras que não estas [para verificar como a leitura foi feita, por exemplo], talvez mais para a frente, quando o prazer do livro não estiver ameaçado.

O Professor como artista

A escolha dos livros que eu lia na sala de aula, era feita com uma espécie de batota. Só levava para a sala os livros de que gostava. Acho que o primeiro critério para selecionar os livros a ler na aula devia ser o professor gostar deles. Se o professor não gosta, como vai fazer gostar? Mas acontecia, de vez em quando, uma criança levar um livro para a escola para eu ler. E acontecia, por vezes, eu não gostar dele! «Já leste, ou alguém leu para ti?» – Perguntava. Eram estes os livros que, quando não gostava, não lia, normalmente, até ao fim [porque nem tudo se lê até ao fim]. Depois havia uma regra, que procurávamos respeitar com rigor: não se lê para os outros de improviso. Um artista que «toca a leitura prá gente gostar» não improvisa, porque, às tantas, se não gostar do que lê arrisca-se a mostrá-lo na voz: a leitura precisa de ser estudada. Portanto, nunca lia na hora os livros que as crianças traziam. E à conta disso, com o tempo, por vezes, o interesse que levara ao pedido que eu lesse este ou aquele livro esfriava e eu deixava que alguns desses livros caíssem esquecidos.

Nem todos gostamos das mesmas coisas. E nem todos os livros apaixonam todos por igual. Por isso é tão importante diversificar as escolhas, deixando a quem conhece melhor os alunos, a decisão de os dar a conhecer, e que só pode ser o professor. Com a entrada de livros na escola, mas sem livros de leitura obrigatória, o professor vai começar por «tocar a leitura» dos livros que o une melhor aos seus alunos: são os livros que, certamente, ele vai procurar «tocar» até ao fim, incentivado pelos aplausos da audiência. Os outros, ele vai dando a conhecer, lendo uma página daqui e outra dali…,  e um comentário, de vez em quando, que provoque a curiosidade da sua leitura mais à frente.

Nesta coisa de livros distribuídos, obrigatoriamente, por anos de escolaridade, no 1º ciclo [este ano é para ler estes e para o ano aqueles], não vejo, portanto, nada de bom. Tive alunos que leram Mário de Sá-Carneiro no 4º ano. Como eu gosto de Mário de Sá-Carneiro, eles vieram no meu gosto por arrasto. Ouviram e leram poemas de Pessoa, de Sophia, de Eugénio, de Camões, de O’Neil… e tantos outros que, quem seleciona os livros que devem ler, não os veem a ler nestas idades, alguns lidos mesmo por artistas que tocaram a leitura para eles [as novas tecnologias fazem estes milagres de oferecerem-nos artistas que tocam a leitura para nós]. Não sei quando voltarão a encontrá-los na sua vida escolar. Mas sei que, quando os encontrarem, já terão a memória de tê-los conhecido com prazer, longe de leituras condicionadas por perguntas de testes e exames, e talvez se deixem agarrar melhor por eles [VER/LER >>>].

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