Em defesa do uso da tecnologia da escola
Houve tempos em que tinha duas formas de letra manuscrita: uma só para mim, sem preocupações estéticas, e outra para os outros, mais desenhada. Com a aquisição da minha primeira máquina de escrever, a letra manteve-se desenhada, nas cartas que escrevia para os amigos; já em todos os outros textos que escrevi, a máquina de escrever tomou o lugar na escrita da letra que antes procurava fazer “redonda”. Chegaram os computadores e com eles a “net”. As cartas foram caindo e o que tinha a dizer por escrito passa a ser enviado por correio electrónico. É a machadada final no passar a limpo, com o processador de texto a tomar conta da escrita. E o rascunho, com os movimentos do “rato”, vira instantaneamente texto editado. Entretanto, o que escrevo com a caneta mantém-se, normalmente tosco, no papel em que é escrito: não é passado a limpo, a não ser que venha a ser útil em textos do tipo que escrevo aqui. Até que, recentemente, recebo de um amigo de longa data, com quem me comunico na “rede” [também], uma carta daquelas que chegam pelo correio, entregue pelo carteiro, com selo e tudo! Foi uma surpresa de que não estava espera [uma surpresa é sempre uma coisa que não se espera. Mas há surpresas que não se esperam mais do que outras]. Até então, abrir a caixa do correio era gesto rotineiro que não me pedia nada de especial; se a caixa estivesse vazia, perfeito: seriam menos contas para pagar e menos lixo no ecoponto. Continuamos a corresponder-nos regularmente desta forma, respeitando uma única regra: não falamos do que escrevemos de outra forma: a “césar o que é de césar”, que o mesmo é dizer, o que traz o carteiro é o carteiro quem traz. Em conclusão, além de verificar que a minha motricidade fina já não me dá a letra redonda que costumava dar-me, fiquei mais exigente com a minha caixa do correio e passei a esperar dela mais do que a publicidade de um qualquer hipermercado.
Vem tudo isto a propósito da demanda contra a entrada das novas tecnologias na sala de aula, que tem caracterizado um certo discurso sobre a escola, que nos é imposto ultimamente, e de que a reportagem que vi há tempos na tv é exemplo [já não me recordo em que estação, nem para que programa]: um repórter interroga estudantes universitários e pré-universitários sobre a tabuada de multiplicação e a maior parte hesita, responde errado ou não responde. E a conclusão chega arrasadora: a culpa só pode ser da máquina de calcular, que entra demasiado cedo na escola [logo no 1º ciclo] e dispensa os nossos jovens do esforço de “puxar pela cabeça”. No entanto, fica por saber se os estudantes não responderam ou responderam errado porque esqueceram ou porque nunca aprenderam. Mas a situação, ao que parece [ou alguém quer que pareça], mantém-se. Vai daí, Nuno Crato e a sua equipa do ministério da educação concluem, em linha com o pensamento dominante, que nos é passado na generalidade dos órgãos de comunicação social, que o problema está na dependência excessiva da máquina de calcular e advogam a proibição do seu uso nas escolas do 1º ciclo. Estranha conclusão esta: jovens universitários não sabem a tabuada e proíbe-se a entrada da máquina de calcular no 1º ciclo. Cá para mim, o lógico seria que os obrigassem a decorá-la, já que as crianças, à saída do 4º ano, sabem papagueá-la de cor e salteado. Que bom seria se as nossas dificuldades matemáticas estivessem na tabuada e tudo se resolvesse com o exílio da máquina de calcular num lugar desconhecido. Mas acontece que nem os nossos problemas estão na tabuada, nem a tecnologia pode ser exilada. Pode, é certo, ser banida da escola, mas não é possível expulsá-la das nossas vidas. E ainda bem.
Pedagogia Versus Ciência
Os dois principais discursos [o cientifico e o pedagógico] que orientam as decisões educativas, têm-se apresentado em Portugal num debate desigual. Hoje assiste-se à exaltação da ciência [de uma certa ciência] em tudo que é definição do currículo. E nesta exaltação, esquece-se que nem tudo na educação é científico e desvaloriza-se o olhar da pedagogia sobre as práticas educativas da escola. E ainda mal. Nunca como hoje soubemos tanto sobre o cérebro e como a aprendizagem se processa e tão pouco proveito tiramos deste saber todo! Sabe-se, por exemplo, da importância da memória na aprendizagem e parece que não existe outra coisa que não seja a tabuada para exercitá-la. Pobre memória que não encontra coisa melhor para se desenvolver! Falta cultura pedagógica nos debates sobre a educação. Falta pedagogia na forma como se enfrentam os desafios da aprendizagem na escola.
Não sei [nem sei quem sabe] em que ponto do percurso escolar os nossos jovens perderam [se é que perderam] a tabuada, nem sei a partir de quando desaprenderam de escrever. Sei que, à medida que escolaridade avança, se escreve cada vez menos em sessões orientadas com esse fim, por força de um currículo mal desenhado, e que as operações aritméticas deixam de fazer parte do programa. E sei [sabemos todos, aliás] que o conhecimento que não é mobilizado tende a ser abandonado e esquecido. A questão “sim ou não às TIC” na sala de aula está mal colocada, induzindo uma resposta viciada; colocada nestes termos, encontrar-se-ão sempre argumentos contra e a favor para sossegar quem se encontra num e noutro lado da barricada. Para mim, já que não quero o processador de texto e a calculadora banidos das nossas vidas, prefiro colocar a pergunta: que uso devo dar-lhes na sala de aula?
As tecnologias são apenas instrumentos de apoio ao ensino, de apoio ao trabalho do professor; não são instrumentos facilitadores do trabalho do aluno, não dispensam o esforço de decorar a tabuada, nem o uso da caneta numa escrita sem erros. Pretender que a máquina de calcular inibe o desenvolvimento da capacidade de cálculo das crianças ou que o processador de texto promove o desinvestimento na aprendizagem da escrita, é fazer das crianças seres estúpidos e tomar os seus professores por mentecaptos; é pensar que este ou aquele recurso tecnológico entra na sala de aula e que quem lá vive não percebe que algo tem que mudar para que ele funcione neste espaço. Quer dizer, um instrumento entra na aula e cumpre a função para que foi criado, apenas e só, quando lhe é pedido que cumpra. Quando uso uma máquina de calcular não é porque não saiba fazer contas ou não queira pensar muito, mas para ser mais rápido sem errar. Quando uso um corretor ortográfico não é porque não saiba escrever sem erros de outra forma, mas para me defender das distracções. Se os automatismos que criei e vou criando continuamente me permitem ser mais eficaz do que uma máquina, seria estúpido usá-la. Este é o princípio básico que orienta o uso das tecnologias, em qualquer espaço e que transporto para a sala de aula: ser útil, de facto.
Acontece que uma coisa tem dois modos de mostrar a sua utilidade: mostra-a, naturalmente, sem que seja necessário procurá-la, e revela outras utilidades a quem se dispõe a procurá-las. Na escola, a tecnologia vale, muitas vezes, pela utilidade que procuramos para ela [a pedagogia mostra-se nesta procura do sentido útil que, na educação, é preciso dar às coisas]. Assim, na sala de aula, não pego na calculadora para fazer um cálculo que não sei fazer, mas uso-a para treinar-me a ser mais rápido do que ela ou aproximar-me dela em rapidez; não me sirvo do corretor ortográfico para me defender de distracções, mas concentro-me na tarefa de escrita e verifico, no fim, o que escrevi com erros, aprendendo com a informação que recebo. [note-se que verificar onde acertei ou errei não é impedir-me de errar: o estatuto do erro na aprendizagem, marca o uso que se faz da tecnologia na escola]. Claro que pode acontecer o seu uso em circunstâncias que não desejaríamos ver usado. No meu tempo de escola, por exemplo, um lápis bem afiado tanto servia para escrever e desenhar como para picar o colega da frente: a sala de aula não é espaço imune à transgressão, mas lugar onde a transgressão tem consequências.
Voltando ao início da conversa, não deixamos de escrever cartas porque o computador entrou na sala de aula. Em mim, o hábito perdeu-se e, no entanto, no meu tempo de escola, o computador não era sequer ficção. Deixei de escrever cartas, apenas e só, por não ter a quem escrevê-las: havendo quem queira lê-las, rapidamente o hábito se recupera.
Daniel Lousada