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Quasi de Mário de Sá-Carneiro

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Ouvir ler, emprestar a voz e recriar noutra escrita, para procurar ver como se faz

Daniel Lousada

A minha experiência, como escrevente, leva-me a acreditar que, tal como desenvolvemos a nossa fala na fala que temos com o outro, é possível desenvolver a nossa escrita com a escrita que o outro tem connosco. Copiar, neste sentido, é entrar na escrita do outro e deixá-lo orientar a nossa, actuando nessa zona de «apropriação criativa não plagiadora» que, no dizer de Eduardo Prado Coelho, é «a zona indecisa em que as palavras dos outros são as nossas e as nossas são ainda as palavras dos outros»,[1] num jogo dialógico idêntico ao contido na preposição de Bakhtin: «a partir de "palavras-alheias" que, pelo jogo dialógico, se transformam em «palavras-próprias-alheias" para, finalmente, se transformarem "palavras-próprias"»[2]. Então, a hipótese que procuro aprofundar, é a cópia impregnada daquele acto de copiar, como possibilidade de acesso a uma escrita que não domino ainda: um instrumento que me ajuda a encontrar a forma de dar forma às minhas ideias, numa busca que procura, no modo como o outro organiza e faz mexer as suas palavras, uma espécie de chave de acesso, à escrita que procuro: «(...) Entretanto copiava amorosamente o meu  primeiro livro de versos. Mau, claro. (...) Nesse tempo a graça da poesia era o fugir da infância para as palavras dos outros».[3]

Mas ao mexermos num texto que não é nosso, não estamos, propriamente, a escrever; apenas tiramos a mão do seu estado de repouso, para a fazermos tomar palavras de empréstimo. E, pode acontecer, a seguir a uma frase, a uma palavra que a mão copia, abrir-se um desvio em nós, onde encontramos palavras que, instantes antes, não víamos que tínhamos, para escrever o que sentimos: «Às vezes - diz Forrester ao jovem Jamal, sugerindo-lhe a cópia de um dos seus textos, ao verificar o impasse em que o jovem se encontrava - o simples ritmo da dactilografia, leva-nos da primeira à segunda página. Quando sentires as tuas palavras começa a dactilografá-las».[4]

Na escola, esquecemos com frequência que, no que respeita à aprendizagem da escrita, o importante é escrever, nem que, para tanto, coloquemos quem aprende em contacto com palavras que não são suas, numa espécie de convite a sentir a fala de que são feitas, tacteando-as com a mão, num processo que se assemelha, de certo modo, ao processo que o escultor experimenta na presença do modelo.

No processo assim, fazemos do "texto de autor" um modelo, e recriamo-lo, fazendo da forma escrita uma fala, que investimos, esculpida, na nossa escrita. Lemos, então, este modelo, através [ou à procura] da fala que o fez assim. Não se trata, apenas, de ler, mas de «ler como um escritor», para usar as palavras de Francine Prose,[5] com uma leitura só possível se a fala que o escreveu, estiver presente.

Com este modo de solicitar a escrita, o que busco é, essencialmente, uma forma de incutir o prazer de fazer entrar as nossas palavras num jogo de palavras, que esconde sentidos a revelar, a partir do jogo proposto nas palavras do outro.

O texto [se for poético mais intensamente] precisa de um leitor que aceite entrar neste jogo, que esteja disponível para apreciar as diversas combinações que as palavras podem tomar na frase. É o encontro do texto com um leitor que, no dizer de C. Lewis,[6] mais do que querer saber o que se passa a seguir, quer saber tudo o que as palavras, na forma como se arrumam, lhes querem dizer.

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NOTAS

1. Prado Coelho, Eduardo. Prefácio, in Diderot, Denis (2009) "Jacques o Fatalista". Lisboa, Tinta da China.

2. Colello, Sílvia (2007) "A Escola que (Não) Ensina a Escrever". S. Paulo, Paz e Terra.

3. Ferreira, José Gomes (2000) "Raízes de Granito: antologia de poesia e prosa sobre o Porto". Lisboa Som Quixote.

4. Em "Descobrir Forrester". Um filme de Rob Brown, 2000.

5. Prose, Francine (2007) "Ler Como um Escritor". Cruz Quebrada, Casa das Letras.

6. Lewis, C. S. (2000) "A experiência de ler". Porto, Porto Editora.

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